sábado, 20 de setembro de 2008

O medo

Supremo argumento da retórica. Quando tudo o mais falha, resta recorrer ao espírito supersticioso da platéia. E trazer à tona os fantasmas mais assustadores. Está em volga perceber o que mais aterroriza o interlocutor, e isto usar contra a pobre alma crédula e indefesa.

O medo fisiológico é um recurso de auto-preservação. Aumenta a adrenalina provendo mais força para escapar a situações de ameaça. O coração acelera produzindo maior oxigenação do celebro e aumentando a atividade muscular. A respiração também e aumentada. O corpo se aquece ligeiramente permitindo aos órgãos internos trabalharem mais eficientemente. Todo o organismo é “avisado” e fica de prontidão. Preparado para lutar ou correr.

Mas, no plano intelectual, não há ameaças físicas reais, apenas suspeita de que tais sobrevirão. Quer seja uma catástrofe, quer seja a descoberta de algo “errado”. Um crime que o interlocutor praticou. Todos ficam sem ação diante da possível exposição de segredos que possam prejudicá-los, ou da ameaça de punição.

Aliás, a punição também é um excelente argumento. Apela ao senso de auto-proteção. O indivíduo faz coisas piores que o crime no intuito de preservar-se.

A verdade é que todos temem o desconhecido. É possível que alguém não acredite em fantasmas. Mas a simples possibilidade de sua ignorância não ser procedente o faz alvo do temor. “e se for verdade... E se realmente existir...”, pronto na falta de convicção ou argumentos razoáveis é melhor não arriscar.

Quem palestra pode observar no olhar e gesto do espectador: o que o emociona, o que o deixa em estado de alerta, o que o deixa surpreso, e o que o que o leva ao medo. As reações da platéia são uma linguagem que precisa ser levada em conta. Porém saber exatamente que sentimento cada palavra causa é de extrema importância. Haja vista o espectador ficar expostos, como se seus pensamentos estivessem sendo sondados. Em uma palestra é comum observar o conferencista contar casos pessoais sucedidos. Isto torna o discurso amistoso e familiar. A identificação da platéia é maior.

Porém tal recurso serve a outro propósito, sondar o público para adequar o discurso. Muda-se todo o rumo do que se planejou, para adaptar-se às expectativas dos ouvintes. Estes vêem na conferência um espetáculo artístico. Buscam prazer no discurso, e não somente informação.

Tal fato gera um ponto favorável aos habilidosos oradores: prever o que o público veio buscar e oferecer-lhes tal. Em troca incuti-lhes a ideologia que quiser. Tornando-os não só adeptos, mas defensores “da causa”.

Enredados pela falta de aprofundamento no assunto, ou pelo senso crítico adormecido, os ouvintes acabam aderindo às ideologias mais bizarras, contraditórias, macabras, violentas, prejudiciais e preconceituosas. Alienados, recusam-se a ver diferente. Achando ameaça em tudo que os dissidentes propõem acerca de sua postura.

Assim o ciclo de “manipulação” se consuma, bem sucedido e inabalável. Sim, o medo é poderoso. Quem sabe fazer uso deste domina o indivíduo, a sociedade, a nação, o mundo.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Se até pensar...




“No suar do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois
dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás.” Gêneses 3:19.


Inácia estava à porta da cozinha. Observava as galinhas ciscando. As folhas das árvores cobriam o chão como um tapete. Punha reparo em quanto elas diferiam em texturas, cores, formas. Umas mais verdes outras mais secas, quase podres... “podres; como os homens”. Algumas tinha só uma armação, “linda”. O que restou de uns meses de esplendor e verdume.
Caíra uma chuva na tarde do dia anterior. Ela não deixou de observar que algumas folhas estavam misturadas à argila lamacenta e quase branca da beira da estrada. Marcadas pelas rodas direitas da camionete.
A1 sempre saía com ela quando ia a cidade. “Estava um pouco suja, mas era boa de motor, só duas vezes o deixou na estrada”. Ele vinha à sua mente algumas vezes por dia, “é meu irmão tenho que me preocupar”. Recordava a vez que teve pneumonia, “quase morreu. Foi quando decidiu não brincar com a saúde, coisa tão escassa nessas paragens”.
O mato ao redor da casa já pedia jornada de meio dia. Ela não podia se dispor a isso. Sentou-se em um banco feito de tora de madeira, e deixou-se a descansar. “O muito trabalho me deixa fadigada antes do início”.
Os pássaros cantavam, “é uma beleza. Quem dera L1 pudesse ver isso!”. No córrego as piabas faziam festejo e o cheiro de areia lavada misturado com tronco molhado recendia por todo o terreno. Era época boa do ano. A chuva dava estiada e os fazendeiros vizinhos se reuniam a noite pra trocar causos. No alpendre umas roupas secavam. Já estavam meio surradas. “Viver neste mundo e desgastante”.
“N1 esqueceu de novo de recolher os porcos que comprou semana passada. Esse homem parece que num precisa de dinheiro”.
“A I1 não voltou da escola, dá saudade quando ela demora. E, não, é bom estar assim sem ninguém, parece que a gente ouve os pensamentos de Deus. O que será que ele diria daquele tronco de árvore caído perto do rio...”.
Ela tinha muitas dores. Fora ao médico, mas a solução é difícil a quem mora no interior. “Não se conformam! Acomodam-se, só isso. As portas se abrem, fecham; o sol nasce, se põe”; A dor não se afasta deles. “J1 mesmo, tirador de moda, tem braço paralisado, por conta de derrame. A L2 depois que teve o último dos sete filhos quase morreu e sofre dores até hoje. C1 não tem mais conta de quantas feridas fez na lida do campo. Parece que tem jeito pra coisa”.
Não é só ela que percebeu isso, duas moças da redondeza... “mais que descobriram”, viram nisso uma maneira de terem ganhos. D1 e S1, dizendo falar com os morto se aproveitam da fé simples do povo. Não passam de oportunistas. Uma delas, S1, recebeu uma facada, numa festa ano passado, que cortou feio. O ruim é que insiste que fala com meu pai, E meus filho acreditam! As vezes até me passa que possa ser verdade. Como? O velho não tá morto, sumiu... Ou será que tá? O velho Q1 e muito estimado. Vive dizendo que sofre dor aqui, acolá. Nos somos um bando de folhas secas, podres, mortas”.
“É assim, quando jovens somos fortes, sadios, bonitos. Envelhecemos e a falta de respeito pelo próprio corpo cobra sua conta. Só viver não bastou, quem dera tivesse...”.
“O cheiro da água no mato é bom. O barulho do córrego é bom”. Uma aranha, caranguejeira, sai do meio da pedra seca e numa ligeireza se aloca em uma fresta do barranco. A medida que a estrada se inclina, enquanto subimos, o mato vai crescendo ao centro e mais alto dos lados. Um cascalho ralo e disperso enfeita os corredores das rodas. Ali existe cobra, “Onézio disse que elas não aparecem de dia, são bichos noturnos”.
“O portão de madeira é bonito. A chuva vem lavando ele a pelo menos três anos. Dando uma cor acinzentado-dispar”. A Pancha das estruturas tem linhas desenhadas, com diversos formatos, são as rachaduras, feitas pelo sol. “Andar até ele, em dias como esse, enche os pés de barro. É gostoso tirar o barro da sola com uma faquinha. Não tão gostoso como ir tomar banho de rio, e voltando pra casa sentir o cheiro de fumaça na roupa de quem produz comida caseira”.
“Uma vez o R1 encontrou um cacho de abelha dentro de um tronco oco de árvore. Nos comemos mel quase uma semana. Cana de açúcar era a alegria das nossas manhãs. Chupar cana e como um desafio, tanto que força os músculos da boca. A gente não quer parar, mesmo que já não esteja mais agüentando”.
No topo da estrada, quando ela chega à saída do rancho, pode-se encontrar um minador. “Como sai água tão cristalina do meio de um barro tão escuro”. A água corre num pequeno rego até o pomar, que fica a uma pequena distância da casa. “A T1 foi internada semana passada. Ainda não descobriram o que tem, só que gosta do sítio, mas quem não gosta. Ela é muito faladeira, e é difícil ficar com ela muito tempo sem brigar. Tô sentindo falta. Ela sempre trazia alguma coisa de presente. Como no dia em que trouxe um jarro todo decorado. Isso é que dói quando nos separamos das pessoas, as lembranças”.
Inácia sentiu vontade de abraçar a filha, doía por dentro um “algo-sei-lá-o-quê”. Não dava pra conter. “E se T1 não voltar?” Como ela ia fazer? Nunca pensara nisso, mas todos estão doentes. “E se todos se forem?”...
Chamou o Tiú, deu-lhe um forte abraço e o advertiu severamente para que não a abandonasse. O cão a olhava com a língua de fora, como que sorrindo. Era só um cão. “Meu Deus o que penso está fazendo?”. Um tucano estava aninhado no topo de uma árvore. “Talvez fosse melhor mudar pra cidade. Lá tem a G1 o F1 e a C2, e mais gente. Não fico tão só! Fazer o que? Não tenho emprego lá, vamos viver de quê?”.
“O Adonias!” passa a cavalo, marcha lenta. Pergunta aonde ela vai ou algo parecido. Ela vira pro lado da casa e diz que ia perguntar ao L1 como está R1. “Os jacas que a senhora pediu já estão prontos... Hoje vai ter mingau e pamonha no T1. A filha do N2 completa Dezoito. Essa eu não perco!...”. “Amanhã o Agripino passa lá. O abacateiro já tem fruta madura se quiser passar lá...”.
“Os S2 são muito dados à festas. Engraçado os L3, já se acostumaram com enterro. Quando vou até lá eu penso o quanto estamos próximos dela. É como quando brincava de pique-pega. Quanto mais próximo a pessoa chegava, mais emoção a gente tinha. Parece que a cada dia Deus se aproxima mais”.
“A1 se atrasou. Teve de levar umas canas à pastelaria e trocar os botijões de gás...
É ruim quando entra pedrinhas ou poeira no sapato...
T1 falecera, e e os L3 de novo tinham de velar, deve ser porque são muito velhos...
Festa nem pensar, amargura dói mais que ferida profunda...
Doeu dessa vez não...”.
Ela Pensava como seria o Paraíso e compunha o melhor que sua mente podia. E como a mente podia! Ninguém pensava num céu tão bonito, caloroso. Daquela forma morte não era algo tão ruim.
“Chato é saudade, mas o tempo alivia, até apaga... O N1 estava feliz , sua mãe descansara das dores. Não suportava ver o sofrimento dela sem poder fazer nada. Ela disse no leito de morte que ia viver com Deus sem sofrer mais, o amava e a todos os seus. Minha mãe disse que de tanto se falar em morte ela acaba se tornando algo natural, natural como trabalhar e amar.
Choro teve, mas parece que Deus conforta”.
A festa adiaram por três dias. “Era o tempo de primo Aguiar chegar. O povo estava doente”. As sandálias aposentou. Foi um graveto, ou uma pedra, não sabe ao certo, soltou o taco de madeira. “É pena, era bom calçado”. “Flor do cerrado é uma coisa, mesmo depois de velha ainda fica durinha, firme. Parece a teimosia desse povo. Mesmo doentes teimam em continuar vivos. Vai sentem prazer.”
Ela voltou ao mesmo lugar, à porta da cozinha, encostada nas ombreiras. “Eu também já fui moça formosa, o tempo e que não foi generoso. Creio que Deus faz o homem assim pra abater o orgulho. Flor do cerrado fica uma boniteza, mas que olhos podem ver?”.
I1 chegara. “Está linda”, 17, negando que todos estavam doentes. “Mas, ai! O tempo e violentador...”. Os velhos, ela reparava, enrugavam feito maracujá. Ficavam nos cantos ou caminhavam. Vez por outra trocavam umas palavras. Não podia saber ao certo o que se passava em suas almas. E sua filha, “aquelas cochas lisas”, bem feitas, firmes, corpo bem delineado. “Por que a beleza não dura para sempre?” Assim era o céu, sua filha eternamente linda e viva. Sem as violências do tempo, do mundo.
A comida ficava pronta sempre as seis. Gostava de apreciar o resto de luz do sol. Era bonito, como poucas coisas o eram. E entre elas sua filha. Os outros filhos já envelheceram, “se bem que sadios”. Já era vó. As sandálias ficaram debaixo da cama. “Lá junta muita poeira, mesmo que se varra”. O piso era de cimento cru e areia lavada, cheio de furinhos elevações e riscos. Mas era bom que elas estivessem ali, porque embaixo da cama, como na casa toda, não caía água da chuva. “Ficava bem as duas. Ficava bem o par”. E desde então não saíram mais de lá.
Na mesa de cabeceira, a flor, que insiste em não se acabar, e o relógio “amigo do violentador. Mas a eternidade sem aflição... com beleza... é boa, maravilhosa.
Sem sono a cama não existiria. A cama é boa... Ainda mais quando lembro do mato em torno da casa...
Sentar na cama traz segurança... T1 morreu deitada...”.
“Eu vou a festa! Chega de brincar de pique-pega...
A filha do N1, B1 Betânia, também é linda, do jeito que fica bem no céu. Todo mundo já tá lá...”.