quarta-feira, 30 de julho de 2008

Aedos



“O ímpio com a boca destrói o próximo, mas os justos são libertados pelo conhecimento.”
Pv. 11:9.
“No íntimo de um homem as coisas simples são a sabedoria do universo.”
Norberto Hummus Eratis

Numa manhã de Primavera, em meu jardim florido de cores múltiplas, assomou-se à terra e à areia do fundo do quintal uma tão prevalecente nuvem negra como nunca se viu. Tinha o aspecto do papel celofane amassado, e cintilava em textura de mármore brilhante grafite. Seu tamanho não excedia ao da copa de uma árvore de pequeno porte.
Era imagem nítida, mas insistente. Embora semelhante à fumaça não se movia como tal, e com instrumento humano não se podia tocá-la. Pairava por sobre a grama rasteira e as pequenas ervas floridas. Contrastava com o vermelho lúcido de minha rosa no roseiral.
Seu espaço de domínio parecia estar consagrado. Sossego não tive por aquela tarde. Toda empreitada era inútil como convencer uma pedra a sair do caminho.
Aquela coisa não se incomodava com meu desânimo, sequer com minha necessidade de trégua. Quanto mais eu resistia mais ela se firmava.
Os vizinhos olhavam-me já com estranheza e não havia quem, de mim, tirasse seu julgamento. Sentenciavam ser eu o culpado.
Pensei comigo: será que acaso sou o único que sofro com tal suplício?
E ouvia todos repetindo com desdém: Ira, sucumbiu a Ira.
Não eram as minhas noites, nem ainda os dias que se sucederam. Se apartara de mim a quietude.
Uma força impiedosa consumia minha virtude, meu pouco prazer dos dias.
A comida já estava distante de minha boca, como também o riso. Dos meus ouvidos o som escoou e ante meus olhos restou a inabalável imagem escura, que refletia, com lances, os raios do sol.
Murcharam-se por fim as flores. A luz se deslocou do outrora vasto cultivo de belos arbustos.
Sem conforto, sem alegria, sem gosto, invadi o lúgubre espaço da vaidade que me restara. O esvaziei, até que sumiu o encantamento de olhar e restou a saudade de um tempo ido, relutante de voltar.
Fragilizado, ignorei as provocações e fugi de me prestar à irritação.
Em vista de tudo que me acontecia, percebi que minha imagem no espelho era reveladora. Os outros nos vêem diferente da imagem que temos de nós mesmos. Deixamos a vigilância dos que nos cercam ser o limite do que podemos fazer.
Ignorar, ignorar as provocações! Dizia minha alma que doía apertado e enchendo como um balão.
Construí uma escada de concreto. Seu topo estava acima das casas e o último degrau se encerrava em uma parede, subi até ele.
Ficando distante daquela monstruosidade enegrecida pude vê-la se dissipar. Omissa a qualquer esperança de mudar, a resistência caiu. Ela foi sumindo com o tempo, sem deixar marcas em mim. Secou-se como galho de árvore.
Seguindo o curso normal da natureza: maturou, decrepitou, tornou-se em outra-qualquer-coisa.
Surgiu então um sentimento em mim. Acima daquela parede os degraus continuariam. Ninguém podia ver isso, mas eu cria e uma esperança se formou no mais profundo do meu íntimo. Eu nunca poderia ultrapassar a parede e atingir o degrau acima dela. Entretanto, fazia uma idéia do que encontraria, e era maravilhosa. A idéia acalentou uma busca que acabou no crepúsculo da eterna caminhança.
Como o tecer de uma teia de aranha, vi se formar diante de mim a nitidez de sonhos-delírios gostosos, conformados e sabedores de minhas regras. Eu era dono de meu território.
Meu quintal era todo um outro mundo, que, sem reservas, as pessoas buscavam ver. E cessou a tanta má impressão que me tinham.

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