quarta-feira, 30 de julho de 2008

A íris


O carro estava parado sobre um gramado verde. Terceira vez naquela semana que empacava sem motivo aparente.
A linda jovem o deixou. A roda traseira esquerda afundada na grama.
Um rapaz de boa aparência a buscava com os olhos, da sacada de uma casa.
A jovem o notou. Povoou-lhe os pensamentos, dela, uma idéia perdida que a tanto procurava.
Portava o jovem um sério observar. Respeitoso e sincero.
Entreolharam-se. Um Mistério foi tomando os minutos da troca de olhar. E as almas foram se acomodando naquele gostoso do momento. As chaves estavam quietas na mão da motorista. Um vento agitava a roupa do observador na sacada. Os dois se perguntavam, sem querer resposta, acerca do que o outro estaria pensando. Não queriam se largar daquele olhar.
Aquele jogo foi sendo dominado pelo Mistério, que melhorava até o aspecto físico do dois. A moça não notava que o rapaz não tinha Sempre, e o rapaz não notava que a moça estava coberta de Algum Dia.
O Mistério é sábio, torna as coisas mais agradáveis.
O estranho até desceu da sacada e propôs-se a ajudá-la. Abriu o capô do carro. Logo notou que o motor estava sem uma peça. Quis a jovem saber que peça era. Enigma, foi a resposta. A garota nunca ouvira falar no tal mecanismo. “Para que serviria?” — se perguntava — “Não importa”. O que importava era o carro andando.
Dispôs-se o rapaz a acompanhá-la na busca do Enigma.
Na Autopeça o vendedor estranhou, olhou o rapaz que a acompanhava e se riu ironicamente...
A moça ficou intrigada e lançou um olhar ao rapaz que a acompanhava.
Ele se volta para o vendedor e diz: então, tem?
O vendedor para a moça: moça, não me leve a mal, mas esta peça... olha novamente para o rapaz, esta peça não se desgasta, nunca se acaba. O carro pode se acabar, ir para o ferro velho, mas essa peça nunca se acabará. Como você me diz... sumiu. Sem mais nem menos?
A moça rebateu à pergunta dizendo: é um Enigma, só isso. Agora traz que estou precisando.
A dita peça, moça, não se vende. Caso, e tão somente caso, seja necessário repará-la, retificá-la, é preciso derramar a Alma.
Moça e rapaz levaram para bem junto do carro a Alma, cada qual sua respectiva.
Derramada que foi a Alma da moça, mostrou-se insuficiente, precisou também o rapaz usar de sua, na medida de suficiente.
O carro voltou a funcionar, era mesmo o Enigma que estava faltando.
Caiu um mistério entre o estranho e a motorista. Ela o recolheu para si, observando a reação do rapaz. Os dois ficaram sem palavras. Se queriam e não se podiam.
Subia como névoa um esquisito no ar. Do tipo que silencia as atitudes e desestimula o tomar coragem.
No retrovisor, o estranho-prestativo diminuía no passado da distância que o carro percorria rumo à casa da garota. Isso era o que se via pelo espelho. Assim, também pelo retrovisor da alma, as pessoas que hoje nos ajudam vão diminuindo na memória, até sumirem. Era o máximo que um poderia ser do outro: lembrança-agradecida-ao-longe.
O Mistério não pode dar vida, mas pode mudá-la, para que quando os homens cheguem à razão de suas existências, sintam a inexa desconfiança de ainda terem algo oculto a seus sentidos.

Moça e Rapaz se queriam. Não tinham ousadia para satisfazer esta precisão um do outro. Não a tinha na pratica, mas quantas vezes não fantasiaram encontros em suas mentes. Encontros que acabavam num “deixa pra lá”.
Nem a motorista poderia se lembrar: que peça quebrara em seu carro. Mesmo assim, não esqueceu que alguém a ajudou. Quem? Alguém que podia tomar posse do seu coração dela. Coisa que só não aconteceu porque seria o fim do Mistério. O encantamento se desfaria em momentos de convívio cotidiano. Encontro que miserifica as pessoas. Quem sabe? Melhor era conformarem-se com o não tido.
Restou assim uma vontade de se ter entre rapaz e moça. A vontade era prisioneira de uma imensidão de esquecimento que dá esperanças de encontrar alguém. Alguém que na verdade já havia sido encontrado, no passado. A precisão um do outro não é satisfeita no eterno do tempo.
O episódio perseguiu a moça pelo resto da vida. Quem era? O que sentia por ela? O que aconteceria se ficassem juntos? ...o Mistério era tudo o que poderiam ter.

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