quinta-feira, 31 de julho de 2008

Boneca de Barro


Seu tempo gastava em três coisas. A olaria, que recebera de um primo, já falecido. Os livros, que sempre comprava e em cuja companhia amava estar. E por último a marcenaria, esta seu ganha-pão. Todos o conheciam por seu trabalho em madeira, artesanal e caro. A fortuna lhe sorriu na vida, mas não lhe arrebatou o coração. Uma coisa, contudo, o incomodava, estava só. Só de uma viuvez opressiva. Dez longos anos de noites indefinidas e dias entorpecidos na labuta.
Uma imagem fixou-se em sua mente e o perseguia, uma formosa moça que vira na praça central. Guardou em seu coração: os gesto, o perfume, o olhar, as veste; e os movimentos graciosos da cabeça, dos braços, do andar. Tomado de reflexões esquisitas, se via como o possuidor de toda aquela beleza. Se imaginava tocando-a, beijando-a e assumindo o papel de homem.
"O pensamento gera palavras, as palavras geram ações e as ações denunciam as intenções". Após ler esta frase em um livro, concluiu que seria perigoso se entregar a um desejo como aquele. "É melhor fazer uma coisa... que apenas sonhar" — -refletia. Era tímido, buscava coragem para abordá-la. Mas a coragem não veio. Veio o sentimento de querer e não ter. Sentimento de exclusão, solidão, precisão e impotência.
Para qualquer outro homem, todas estas conjecturas são banais e absurda, para ele não. E a razão estava em que a ordem e a ética se uniam para brigar com a conduta, que contraditória, se não cruel, imbuída estava de certa perversidade.
Será que amava a desconhecida? Quanto mais pensava nisto, mais forte era o sentimento. Necessitava da idéia que fazia da moça. Era para a sociedade. Imaginava-se sendo observado ao lado dela. Com todos vendo o quanto ela era bonita. Em seus pensamentos ela era um troféu, que ele precisava ter. Sua mente cismou com tal pensamento, como pode? um homem, como ele, ser feliz enlaçado a dotes de estranha pessoa?
Sem misericórdia da circunstância, frustou-se no recôndito de sua casa, passado, distraído, a escrever. Compôs uma história. Nela a moça era tomada sem reservas, era possuída por direito de criação. Pesou-lhe a ética, e a caneta, já trêmula, parou. Aquilo não lhe parecia certo — a balança da reflexão. Com um embrulho descuidado cestou o conto. Em nome dos grandes momentos, que teve na vida afetiva, e para não mais martirizar o coração se pôs a ocupar as mãos. Tenho o que preciso, o que me falta? quem sabe, o tempo e as circunstâncias trarão. Pena desejarmos o que não podemos ou não devemos ter! — conjecturou.
Mas o medo de perder a oportunidade o angustiava. Uma força, sem senhor, inflou-lhe o peito. Vinha trazendo a um braço a curiosidade, a outro a necessidade, que, ao colo, sustentava, assentado, o desejo. Do barro surge uma miniatura de mulher, em tudo formosa, tal qual a cobiçada da tarde que lhe consumiu algumas horas. Era já noite, a fome resmungava a um canto da sala, segurando ao chão um cãozinho de olhos esbugalhados e corpo de finos contornos.
Apreciou, quis, rejeitou, refletiu, ponderou, chão com ela; e eram só cacos as horas que se passaram. Aquele procedimento lhe era estranho, tão estranho quanto o sentimento, que se recusava a ceder a seu domínio.
No dia seguinte, recolheu da lixeira os escritos proibidos. Os reavaliou. Depois de horas gastas em reformulá-los, um arrependimento. Tempo perdido? A tarefa árdua pareceu-lhe sem sentido, contudo ficara viciado e sempre queria mais. Rasgava, colava, queimava, refazia; tinha pesar, gosto, felicidade, tristeza, dúvida, desejo. Tinha loucura! Em sua mente buscava imaginar quem não se deixava afetar por tal sentimento, em sua opinião, um incoerente sentimento.
Ora lembrava-se da jovem com desejo, chegando mesmo a moldá-la com traços mais lindos, mais perfeitos, ora imaginava-a como seria ao envelhecer, ou se alguma doença a atingisse. Aquilo o torturava. Se ela era uma imagem bonita, causava-lhe desespero — por que não a abordei?—, se decrépita, aborrecimento — como posso ser feliz se não aceito a ação da natureza e do tempo na pessoa que amo? Lembrava-se de sua ex-esposa, vítima dessa mesma natureza.
Mergulhou no infindo mundo das reflexões. Foi engolido pelas palavras, até o ponto de elas não mais fazerem sentido. A vida lhe era pesada. Naquele momento os valores estavam sendo repensados. Tudo o que ele viveu cobrava espaço nos pensamentos. Precisava das fantasias para conter o ímpeto profundo da paixão, mas elas faziam com que aquilo crescesse, e trouxesse à tona o teor da vida. É como se ele tivesse caído em uma cisterna. Não se machucou na queda, mas não encontrava ninguém que pudesse tirá-lo de lá. Tudo era uma questão de tempo, só não sabia quanto e se ele agüentaria a espera.

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