domingo, 31 de agosto de 2008

O ato de escrever e postar no blog e o distanciamento

Escrever exige tempo. O texto precisa ser revisado. E esta revisão exige distanciamento. Que é um espaço de tempo entre o que foi escrito e o momento da releitura.
O distanciamento permite ver com outros olhos o que foi escrito.
No momento em que se redige um texto, o contexto está pleno na mente. Então o autor não tem dúvida sobre o que escreve. Compreende muito bem todas as frases, pois compreende a intenção que teve. Contudo, ao passar certo tempo, esquece as motivações que o levaram a elaborar cada trecho de sua obra. Neste momento o próprio criador começa a ter dúvidas sobre o que queria dizer. É um momento maravilhoso. O escritor percebe as incongruências, discrepância, incoerências, confusões, duplo sentido, informações incompletas, excessos de informação, redundâncias e outras distorções semânticas.
Mas num blog o tempo urge como gostam de dizer os poetas. A necessidade de algo novo é contínua.
Todos os blogueiros passam a “viver na pele” o que os grandes cronistas da história experimentaram ao escrever para jornais e revista: o compromisso de apresentar continuamente algo de valor a seus leitores.
A qualidade pode ser prejudicada. Ou na melhor das hipóteses o blogueiro irá repetir o que outros já disseram ou fizeram. Sempre com uma sutil diferenciação. Embora deva se consideram que não existe originalidade, conforme propagam os críticos literários.
Qual a conseqüência de escritos sem distanciamento? Talvez o arrependimento. Ou o autor diz algo com o que não concorda sinceramente. Isto já considerando as questões de ordem gramatical, semântica e ideológicas.
Então o que fazer? Ser cada vez mais crítico. Tudo na vida é questão de experiência. O aperfeiçoamento vem com a luta diária com o texto. O que hoje não esteve “perfeito” será “dica” para não mais se repetir.
Escrever é ótimo, mas não se compara ao prazer de ser lido, comentado, elogiado, “plagiado” e requisitado.
A todos os neoblogueiros um recado: nunca deixem de escrever. Hoje você é meu leitor, ontem fui ou amanhã serei o seu.

sábado, 30 de agosto de 2008

A fruta

Observe esta descrição que faço do ciclo de uma fruta, e veja se não lembra algo...

A fruta

Quando uma fruta apodrece os microorganismos se juntam em torno dela e começam a se alimentar de seu corpo levando-a a decadência e degenerando-lhe o aspecto. A fruta, no entanto, nada sente, não percebe a presença dos decompositores, porque não é racional.
Com o tempo a fruta é totalmente consumida restando apenas a semente, que poderá se desfazer pelos elementos climáticos ou outros fenômenos. Mas pode ser que a semente, tendo recebido uma carga de terra, que impeça a atmosfera de tocá-la, brote, e dê origem a uma nova árvore.
Portanto ela foi sepultada quando estava podre. Ao receber uma carga de terra germinou longe da ação dos elementos destrutivos da atmosfera.
Uma vez sepultada, permanece sepultada. E dará lugar a uma nova forma. Mas somente se permanecer sepultada, do contrário sua decomposição continuará incessantemente, até que da fruta nada mais sobre que possa tornar-se uma vida.
Quando atingir seu tempo certo a árvore dará frutos, ou seja, irá gerar novas frutas que estarão sujeitas aos mesmos processos descritos anteriormente.
Para que a fruta seja coberta com terra é necessário que uma influência do meio a favoreça. A exemplo disso enxurrada, desmoronamento e o ser humano dentre outros.
Caso alguém venha e descubra a fruta ela poderá ainda persistir e geminar, porém, pode também vir a se decompor.
A vida das plantas quando não sofre influência do homem, segue uma lei de transformações contínuas, que não teriam sentido algum, se não levássemos em conta que elas não podem escolher seu destino.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Releituras

Os melhores textos de autores renomados estão reunidos no site:
http://www.releituras.com/

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Resenhas

Para quem ama resenha e escolhe seus livros com base no conhecimento de autores e obras este é um site excelente.
Seu título é "resenhando"
e o endereço:
http://www.resenhando.com/rg/rg0705.htm

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O pergaminho


Os montes amanheceram lindos. No pasto o gado. Campos verdes e com pendões cor palha. Pouco importante para os pássaros! Nas árvores. Só querem voar, comer, descansar, voar. Estão satisfeitos. Não têm carros, mas estão satisfeitos. Não têm chuveiro elétrico, continuam satisfeitos. Basta a eles as coisinhas que catam no chão, ou na copa das árvores. Pequenos seres, também contentes de si, sem fazerem idéia do perigo. Outra coisa acontece às pessoas. Se procurar que a razão está nos bens que possuem, será contrariados.
O documento foi recebido as três horas da tarde. Tinha fé pública, carimbo e rubrica. Alguém o recebeu e precisava executá-lo. Uma lei o obrigava. A lei do acordo inconsciente que residia nas multidões sem contudo ter sido feita por elas. Se numa escala hierárquica, mesmo que por razões justas, alguém opte por contesta e descumprir o acordo, outro não o fará, não terá a mesma compreensão dos fatos. Em alguma estante de biblioteca há uma defesa acadêmica para a questão, não ausada dos que trabalham duro para se manterem vivos.
A Lei do “si...”é maior que a lei do papel. Prevalece por ter como poder executivo o medo e o poder Judiciário o completo desconhecimento dos limite de ação: Se não fizer isso.... E se tentarem contra mim... e se... e se...
Era um número para os documentos oficiais e um status para sua comunidade. Autoridade, contudo, humano, frágil, até sentimental. Não sabia se alguém notaria o descumprimento daquela ordem escrita. Não compreendia como tal ordem tinha razão de ser.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Dois


Não digo que os dois se conheceram... Aproximaram-se, o homenzinho manso e a mulherzinha meiga.
Ela — mais que ele — foi se instalando aos pouquinhos. Tomando o espaço do outro. Decidindo sem consultá-lo. Dominando-o com seu jeito desprotegido e humilde de ser.
— Amâncio vai...
— Vou!
— Amâncio faz...
— Faço!
— Amâncio...
— É so dizer como quer!
Quando deu por si, havia se doado todinho à ela. Não conseguia encontrar mais nada de seu à sua volta. E muito menos, no próprio interior. Era sempre:
— Pra você!
— É seu!
— Te pertence!
— Pensei em você!
— O que você prefere!
— Você é quem sabe!
— O que você acha!
— Como devo fazer!
— Bem, me ajuda a escolher!
Sim, ele não era mais ele. Ele era o ela queria. Então... sumiu. É... sumiu! Ninguém falava nada com ele. Não podia decidir mesmo. Ninguém o cumprimentava. Cumprimentavam ela! Ele? Nunca. Não o notavam. Até ela só sabia dele quando precisava de alguma coisa.
Não me atrevo a dizer que era preguiçosa. Seria falta de delicadeza, mas não se nega que tudo — todas as tarefas caseiras ou provimento da casa — era de encargo inteiro de seu Amâncio.
Ele não existia para todos, mas sem ele, ela também não existiria.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Inexplicável

Homem mata 25, é promovido e recebe prêmio da empresa em que trabalha.
Onório, 25 anos, jardineiro, casado, pai de três filhos, teve sua vida modificada depois que entrou na empresa COLHIU, uma das responsáveis pela produção de cereais, cana de açúcar, nós mascada, algodão e cacau, no Brasil.
"No princípio os outro funcionários não foram com a minha cara." — diz Onório em entrevista, ao repórter — "Mas fingi que não percebia e fui empurrando o carro de boi. Agora, quando surgiu aquela situação, não pude deixar barato, peguei uma pá e matei todos os que encontrei. Sem dó nem piedade. Deu um trabalhão danado, mas consegui."
E sua esposa o que achou disso? — Repórter.
De início ela ficou perturbada, que ela é muito encabulada com essas coisas. Pediu pra sairmos de lá, antes que fosse tarde de mais, mas não dei atenção, emprego tá difícil. — Onório.
Marcos, administrador de empresa, quando foi notificado a cerca do assunto disse que ninguém tomou providência até que fosse tarde demais, "agora taí o resultado. Quem vai ser responsabilizado pelas pessoas mortas?"
Os familiares das vítimas estão indignados. Não entendem como a empresa pode deixar chegar a este extremo, e já estão providenciando um pedido de indenização.
"Eu não tive culpa — diz Onório, com o semblante triste — apesar de morar a pouco tempo aqui já tinha me afeiçoado a algumas dessas pessoas. Mas não tive outra escolha, todo mundo parecia estar contra mim. Daí resolvi agir.
Maria Dolores, empregada doméstica, toma a defesa de Onório, afirmando que também era importunada durante o período de trabalho e todos faziam silêncio porque não queriam se envolver com a questão: "Foi priciso morre gente prôs puliça agirem."
Agnelo, engenheiro agrônomo da empresa, diz que no princípio os vizinhos não tinham idéia da gravidade da situação, mas assim que tomaram consciência foram se mudando, aos poucos, das proximidades da empresa onde Onório trabalhava. Ainda mais, os escorpiões em questão, eram os de papo amarelo e foram os responsáveis pelas mortes. E quando Onório tomou a atitude de eliminá-los, matando em um só dia vinte e cinco deles, mereceu a promoção e o reconhecimento dos companheiros de trabalho. Os ‘casca-dura’, como o povo costuma apelida-los, apareceram em conseqüência do desmatamento de uma pequena floresta nos arredores, e do acúmulo de lixo e pedras, que se encontravam no terreno da empresa.
Terminando de ler os fragmentos de notícia nos jornais, Jenuíno se levanta da cadeira, dirige-se ao quarto, deita-se na cama, e diz pra si mesmo: "desmatamento e entulho uma conversa. Se não fosse euzinho esse camarada nunca teria a promoção. Pena que aquele bicho não é astuto, custava matar o dono e os diretores da empresa."

sábado, 9 de agosto de 2008

O Monte Orgamunom




"No mais profundo abismo até as trevas são alguma coisa."
Helen Dummey


A tarde se acumulava de gente. A cidade era pequena, mas cabiam as conversas, os trabalhos, as tragédias, e o ócio... Os prédios se decretavam eternos, sem se disporem a conhecer que nada é sagrado para os homens. A atividade das gentes trazia risos, carinhos, preocupações, abalos, confortos, mesmice, descobertas...
O mundo das palavras, conta uma lenda, brigou com o mundo do real e deste se afastou. Foi que do muito não-contato desapareceu dos livros o verídico. Nem tudo podia ser transposto para o papel. Agora o real era lembrança de uma passada união. Posto que isso se deu o tempo e o lugar se apegaram as palavras e festaram um dia, dois, três... que hoje ainda se vê.
Trabalhava Alair em um jardim. E as idéias o atacavam sem piedade. Percebia, sem aviso, que o um mundo era um grande-tudo-de-uma-única-coisa. Tudo tinha um princípio básico, que pelo muito se repetir dava o efeito de diferente. Cerca viva, era um conjunto de ramas e folhas. De acordo com o corte se ia tomando forma e resultava de algo qualquer-coisa-outra.
Como podia ser isso? Em contrafeita, a vida é curta para se buscar uma tal resposta. Curta a vida, não o mundo. Pelos jornais, revistas, e outros meios de comunicação se estabelecia um dilema na cabeça do jardineiro: o mundo é grande ou pequeno? É grande, tem muita gente, casas terras. Como? Se podemos dar a volta em todo ele a poucas horas. Não, é pequeno. Se é assim por quê demoro tanto tempo de casa até o trabalho? É grande. Tem tanta coisa nele.
E não cabia o mundo em um minuto de pensamento. Tal que o filodiano se desesperou em muitos subsequentes dias. Queria todas as coisas na mente. E não achava de tê-las, por questão de ordem. Começou a se disciplinar. Pensaria em algo diferente a cada momento. Não pôde. Vai vê o mundo é pequeno mesmo. Vou me concentrar. Encontrando-se em sua chácara subiu em um monte, ponto mais alto. Fixou o olhar no horizonte. Se cansou de contemplá-lo, apesar de não ser, este, o mesmo a cada segundo. O mundo era de uma tal forma o mesmo e diferente que o espantou. Teve medo de tudo. E se ele fosse único no mundo? Olhou as flores no cerrado. Não pensavam, não sentiam, não doía para elas. Doía para ele. Se sentia só, num universo cheio. Cheio, mas vazio. Vazio do quê? E eram as árvores, os pássaros... Pensou: o que preciso é de um espaço menor, assim não me distrai-o. Tudo parecia ser muito, nada era simples. Pegou uma pedra. Essa é simples. Não era. Descobriu formas, texturas, cores... a pedra era um universo gigantesco, não cabia no querer pensar. Fechou os olhos. A escuridão é simples. Vazio, vazio, vazio... Não agüentava mais. O mundo era o vazio de muitos tudo. Os pensamentos forçavam passagem, insistiam, não aceitavam-se desprezados. Começou a prestar atenção à respiração. Foi sentindo falta de ar, desconforto... parou.
O mundo era demais para ele, mesmo que coubesse na palma da mão. Tudo era tão simples que podia ser dito. Daí as estórias. No entanto existiam livros e livros, e todo assunto ocupava horas na vida das pessoas sem se fechar totalmente. Como pode o mundo ser tão simples e complexo, compreensivo e avesso à lógica.
A pessoa que vai realmente volta ou a vida é um constante ir? O tempo está passando ou é o mesmo eternamente? Se ontem é o hoje de amanhã, então o tempo é um sempre eterno? Há muitas razões para se fazer algo, e tantas outras mais para não se fazer. Não pode portanto existir uma maneira única de se agir. Como então o homem vai se orientar? Se é possível cercar todas as decisões usando de um princípio básico qual é ele? O que o homem deve buscar ter na vida?
Em sua mente pulsava que: a vida é um tribunal. Há quem acuse, quem defenda e um que julga tendo o poder de decidir. A parte que for mais convincente domina.
Foi surpreendido então por um sentimento. Não ser apoiado. Impotente diante de algo opressivo, opressivo com não poder escolher. Veio que, as pessoas se unem por necessidade, não existindo esta, percebe-se os outros se afastando. Não é somente uma solidão. É o esquecimento de ser, do qual só participam os que têm consciência da própria existência.
Logo lhe surgiu que na verdade somos mercenários. Negociamos tudo. Constantemente estamos fazendo acordos uns com os outros, e até com Deus. A vida é isso: enquanto tivermos algo para trocar/dar/vender estaremos vivos, quando não mais tivermos, hei-nos na sepultura. A história é a prova disso. Os homens que são dados, pela história, como grandes, não passaram de peritos negociantes que um dia não puderam mais barganhar.
Tudo girava em torno de um centro. Por mais que as idéias fossem se distanciando umas das outras, logo encontravam um ponto de convergência. O ponto central tornava sem sentido toda a especulação e deixava uma sensação de estar perdendo tempo com pensamentos infantis, insipientes.
As pessoas não refletiam sobre o sentido da vida. Elas viviam cada momento, viam apenas parte do quebra-cabeças, não faziam idéia de como era ele todo. Não sabiam o mundo do real.
Também se buscassem saber, a vida ficaria sem sentido? As formigas são exemplo disso: todos trabalham para continuarem vivos, mas vivos para continuarem a trabalhar?
Ninguém sabe ao amanhecer o que será o dia, o quê há de acontecer, nem sequer para o fim de refletir.
No jogo de ganhar ou perder: quem perde se deixa desanimar, mesmo que por pouco tempo; quem ganhar alimenta uma falsa idéia de bem estar, mas tudo que se ganha não será mantido. A dimensão do tempo, magoa e cura, distorce e conserta, tira, toma e traz de volta.
O mais certo é o poder da palavra. Uma palavra pode originar ou encerrar enormes discursos.

vagabundo esperto


Pegou um novelo e começou a desfiar.
Quê tá fazendo?
Olhando o destino dos homens
Quem qué esse?
Você!
Quê que vê?
Aqui?... trabalho... descanso... lazer...
Tá acabando o fio?
vai morrer.
Passa pra cá calhorda, vai vê se pode? Morrer! Hum, Hum, Hum! Seô, ai! Ãh... ãh.

Sentou num velocípede,
pernas avantajadas a idioticiclar.
Quem quele pensa que é?
Deixa, a fome bate!
Fingiu que morria.
Condoído ô, da casa de comidas,
bom almoço fartou,
pra gentileza,
na mesa de melhor lugar.
A não poder se atulhou.

Agora, provável que morre!
Ó, deitou!
Morreu?
Aquilo tá é dormindo!

Amontoou, num canto
remoendo filosofias suas tidas.
A de pano velho enlamaçado,
do cão faminto,
do carro funcionando,
do dinheiro no bolso.
Só não sabia utilidade de quais.

Espalhou boatos
para avolumar o devido evoluir da cidade.
Foi um caos não tocado do ser partido.
Cumpriu o dever.
Fazer o quê, se povo outro
entende de mal maneira.

domingo, 3 de agosto de 2008

Bode de dar dó


Certo dia um bode que estava no meio da rua encontrou um velho que parecia estar morto. O bode mordeu a perna do velho. O velho achou bom e passou a ser seu dono. Colocou o nome do bicho de Banguela, porque o animal tinha apenas dois dentes.
O velho foi comprar comida para dar ao bode, na venda cujo dono costumava roubar no preço das coisas. Lá chegando viu uma mulher muito filé, que era muito amiga dele. E quis que ela visse o bode. Quando eles chegaram na casa do velho, o bode correu para cima da mulher. Começou a morder. Desesperado o velho correu até a mercearia e pediu ajuda. Quando voltaram viram a mulher e o bode estendidos no chão. O dono da mercearia balançou a cabeça e disse:
— Que desperdício. O bode ainda dá uma buchada, mas a mulher a terra come.
Uma velhinha saiu da casa e falou:
— Do que você tá falando.
E o velhinho chorando:
— Não vê minha velha. O bode matou a mulher e depois morreu.
— Morreram coisa nenhuma. Os dois ficaram foi amigos depois que a mulher ofereceu uma garrafa de caninha-da-roça. Beberam até amuarem.
E deste dia em diante conta-se que os cinco costumam se reunir para comer mingau milagroso e jogar carta.

2004
Jaqueline de Souza Feitas.

sábado, 2 de agosto de 2008

A preciosa menina


Os pais da menina saíram com ela para o hospital. A vovó estava dodói, pareceu muito sério.
Lá na emergência não entrava crianças. Só se o paciente estivesse às portas da morte.
A babá levou a menina para o pátio do hospital.
Todos os enfermos, que tomavam sol, estavam tristes. A menina não gostou deles. “Quem eram?” Não sabia, não importava.
A menina desgostou de toda a grama enferrujada que viu. Não existia animais nem flores.
A menina recolheu Deus do Céu. E lançou sobre o mato quase morto. E Deus riu, e a grama floresceu, explodindo como fogos-de-artifício, em tons: azuis, vermelhos, rosas, brancos, amarelos, infinitos, eternos... Deus viu que aquilo era bom.
Os pacientes ficaram estáticos, olhando sem compreender. O silêncio era tudo.
E a menina sentiu falta de um coelho, e de um cachorro, e de um pássaro, e de um..., e de um..., e de um... E recolheu Deus das flores, que continuaram flores, e lançou sobre a lesmas, e o tatu-bola, e o gafanhoto, e a minhoca, e a mosca. E foi que apareceu muitos animais bonitos e carinhosos, que emprestaram alegria aos olhos dos doentes que estavam a volta.
E a preciosa menina avistou um antigo parquinho. Brinquedos enferrujados, areia suja e dura. A menina não o quis assim, recolheu Deus do olhar dos pacientes e lançou no parque. A areia ficou branca como a neve e os metais coloridos e bonitos como que fossem novos. As crianças enfermas correram para os brinquedos.
E a menina encasquetou de brincar que estava na praia.
Alguém falou:
— Menina pequena, isto não é praia e só o parquinho do hospital.
Sem ligar para o que ouvia, recolheu Deus da areia e lançou no vasto terreno baldio, aos fundos do hospital. E surgiu um pequeno lago, muito bonito. Alguns pássaros, que voavam ali perto, descendo pousaram sobre as águas e mergulharam a cabeça. Foi que os pacientes viram que a água era límpida e ao fundo tinha areia, cascalho e cristais. Semelhante a fundo de aquário. Também viram peixes coloridos nadando. Parecia uma festa.
Um senhor barbudo se virou para a menina e disse:
—Sai daqui, garota pequena que nos perturba. Deixe que morramos em paz. Sem saber da beleza que existe. Porque, a quem morre, dói o coração saber que existe beleza que não vai apreciar.
A menina ficou furiosa. Recolheu Deus de tudo e lançou nos corpos dos pacientes. E todos ficaram curados. Alguns choravam, outros riam. Uns duvidavam procurando a doença. Outros corriam, queriam voltar para suas famílias.
Então era o fim. O médico informou que a vó descansaria em alguns minuto, descanso eterno. Os pais recolheram a menina do pátio e puseram diante da vó.
A doce velhinha sentia dores, mas pôde ver a criança. Viu que a garota tinha recolhido Deus para si. Se acomodou melhor e sorriu.
A garota lançou Deus na vó e um alívio completo se apoderou da idosa. A vó agradeceu e suspirou.
Deus recolheu a vó do leito e lançou no Paraíso. E o Paraíso ficou mais alegre. O número de glórias e aleluias aumentaram. Todos queriam se aproximar da menina que chegara ao Lugar de Descanso. E a vó ficou feliz de saber que quem tinha coração de criança, no Céu voltava a ter forma de criança.
A menina e os pais voltaram para casa. Ela estava cansada e dormiu. Sonhou que Deus sorria. E recolheu o sorriso de Deus para si.

A perereca sabida


A perereca sabida morava numa cidade que se chamava bodega. Nesta cidade havia um caboclo que tinha a cabeça cheia de piolho, e se chamava anticonstitucionalissimamente. Ele criava um besouro, que um dia a perereca foi lá e o comeu.
O caboclo ficou muito zangado, por que o besouro era a única companhia que tinha. Ele foi no otorrinolaringologista para ver se o bicho tinha entrado em alguma parte da sua cabeça.
Dentro da barriga da perereca o besouro encontrou uma “besoura” fêmea. O besouro, como era muito beijoqueiro, foi logo em cima dela. Esfregando aquele cavanhaque nela.
A perereca empacou no meio do mato e c... os dois besouros no mato, e o dono do besouro como era muito abestalhado pisou nos dois na volta para casa.

2004
Cleverson

Formiga


Saiu do buraco com um grão de areia à boca duzentos e noventa e nove vezes em seis horas.
Cortou e carregou quinhentos e sessenta e três pedaços de folhas só em um mês.
Caminhou sete mil oitocentos e dezesseis quilômetros em um ano.
Bebeu três vezes a quantidade de água ingerida por um besouro. Comeu o equivalente a três quilos em toda a vida.
Morreu numa tarde de novembro de 1982, esmagada por um pedinte que estava dormindo perto da entrada do formigueiro. Isto às três horas quarenta e cinco minutos e dez segundos.
“Droga de formigas, ficam andando em cima da gente. Elas não têm mais o que fazer” — o sujeito, ao limpara a manga da roupa, que não lava a pelo menos sete meses.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Mistério na cidade de Macambá




“A voz do povo é a voz... da elite."
Anônimo

Foi noticiado no jornal, agora era lei. Todos os moradores da cidade de Macambá deveriam ter em suas casas uma placa fornecida pelo governo. Era uma autorização que tornava a casa habitável, uma espécie de alvará. O D.O.A.M. (Documento Obrigatório de Autorização de Moradia).
Nos primeiros meses as filas eram gigantescas. A placa era bonita e virou uma espécie de título, que dava status ao portador. Diferia quem tinha valor e quem não o tinha. Uma parte da placa tinha informações intransferíveis como o endereço da moradia, um breve texto da lei que instituiu seu uso e o nome das autoridades legais. A outra era modificável e trazia o nome dos moradores.
Ao entrar nas lojas, logo era percebida a novidade. As cores eram vivas como as de selos metálicos... O material era desconhecido. A plaquinha era afixada sobre outra que já estava devidamente presa à parede.
Tudo parecia bem. Os moradores estavam felizes com a novidade. Chamavam de "status de moradia". Atraiu turistas e curiosos. Outros prefeitos estudavam a possibilidade de imitar a iniciativa.
Mas em alguns meses as coisas mudaram. Alguns moradores estranhavam o material do qual era feito o objeto. Outros suspeitavam que se tratava de uma espécie de aparelho eletrônico de escuta. Alguns moradores afirmavam que ouviam vozes, sons e viam luzes nos cômodos onde estavam a plaquinha. Alguns suspeitavam que o objeto era um receptor de radiação.
Os mais paranóicos desconfiavam que alguma grande catástrofe estava sendo investigada e que as plaquinhas eram as sondas.
Tudo de errado era atribuído as plaquinhas. Se alguém ficava doente, se perdia o emprego, se brigava, se os gastos da casa aumentavam, se desaparecia algo, se alguém ficava louco, se... se... se...
Em pouco tempo a cidade estava um caos: Intrigas, discussões, revoltas, desentendimentos, terrorismo.
O povo se dividia. Havia os que apoiavam a permanência das placas, e os que eram contrários. Todos já tinham tantos documentos, tinham que responder a tantas leis, por que mais aquele capricho?
Os políticos não se incomodavam o povo sempre acaba aceitando novas leis e se acomodam. Logo ninguém mais falaria no assunto e a polêmica se encerraria. Foi o que aconteceu.
Mas ... um dia alguns cidadão não puderam adquirir as placas para as casa de um novo assentamento.
O governo dizia que o material era muito raro e estava esgotado. Os moradores receberiam uma autorização temporária até que a situação se resolvesse. Sim, "se resolvesse" porque não dependia da administração.
Este episódio criou uma nova polêmica e os moradores acorreram a justiça para buscarem o direito de saber de que eram feitas as placas? E como eram feitas?
O parecer favorável lhes foi dado, mas os técnicos se reservaram o direito de dizer o que queriam. O excesso de termos técnicos e argumentos deixaram o povo na mesma. Os leigos achavam a explanação magnífica, embora não entendessem nada. A peça parecia extraordinária, a melhor tecnologia já inventada. Os técnicos possuíam um "scaner" que permitia a identificação da residência, acesso aos dados da mesma, e a seus componentes.
Já os especialista do povo não ficaram satisfeitos. A demonstração do produto lhes pareceu demasiadamente vaga. Nenhuma das explicações definia bem do que se tratava. Mas eram minoria e não tinha interesse naquela "placa boba" como a chamavam.
Uma epidemia assolou a cidade. Aparentemente só quem possuía as placas ficava doente. A doença causava sono constante, falta de apetite e queda de cabelos e pêlos.
Isto no início. Depois se descobriu que não eram as placas que causavam a doença, mas algo que estava presente na água. Uma espécie de radiação. Os cientista e médicos procuraram inverter a situação.
Era necessário equilibrar a estrutura físico-químico dos corpos. Mas precisavam de uma espécie de filtro para que os raios do equipamento desenvolvido não afetassem negativamente os corpos.
Tudo correria bem, se alguém não tivesse invadido as instalações militares e furtado os metais no intuito de descobrir como eram fabricadas as placas.
O governo pedia à pessoa que praticou o ato, que devolvesse anonimamente o material que removera.
No dia seguinte ao apelo, um milagre aconteceu. Milagre sem precedente na história da humanidade. O material foi devolvido. Todos os moradores doentes fizeram a terapia e se recuperaram bem.
Mas as pessoas estranhavam o grande conjunto de tecnologias do qual o governo tinha posse.
As águas foram descontaminadas, bem como os animais. Mas o que fazer com as plantas?
Então a política nacional se tornou um caos. Parece que o prefeito daquela cidade recusava-se a entregar ao governo federal algum tipo de tecnologia. As coisas aconteciam em sigilo mas o prefeito cuidou para que tudo vazasse para a imprensa. Viu nisso um maneira de se proteger.
Quando o Governo Federal descobriu que todo o povo da cidade tinha em suas casas pedaços do que queria, entrou em pânico. Como faria para reaver as placas?
Partiu para a justiça federal, tentando declarar a medida que instituía as placas inconstitucional. Até obteve resultado, mas não tinha como obrigar as pessoas a entregarem as placas. Já haviam se afeiçoado as tais.
Não existia lei que os obrigasse a entregarem a força as placas.
Então, foi espalhado um boato que a segurança nacional dependia das tais placas. Alguns acreditaram outros não.
Ouve então uma guerra na mídia. O governo declarava uma coisa aos repórteres, mas os cientistas diziam outra.
Alguns políticos simularam um escândalo político. O povo esqueceu a importância das placas, que iam sendo compradas por uma grande corporação. Quando o tumulto passou, o escândalo político já a muito estava abafado.
O Governo Federal desenvolvia um projeto ultra-secreto. Ninguém sabia ao certo qual a finalidade do tal. Só sabiam que era um projeto militar.
O prefeito da cidade teve acesso a informação. Quando adquiriu materiais advindos do projeto, achou por bem espalhá-lo em meio à população. Assim todo o povo teria uma peça-prova do que estava sendo desenvolvido. E o prefeito iria adquirir, prestígio e votos entre o povo. Aquilo o tornaria muito poderoso. Mas política é algo complexo. Sempre vence quem tem mais aliados e mais credibilidade. Obviamente o povo não acreditou na versão do prefeito acerca da conspiração. O povo dividido resolveu obter algum lucro com a situação. Os mais ávidos por dinheiro superfaturavam sua venda. Os acomodados achando o jogo político traiçoeiro, escondiam as placas. Houve quem entregasse as placas a parentes em outra parte do país. E os que entregassem diretamente ao Governo Federal para terem "a barra limpa". Restou alguns que devolveram os placas à prefeitura.
Surgiram então muitas lendas, até sobre o valor das placas.
Quem possuía alguma placa chegou a ficar rico. As lendas davam às placas um valor superior a toneladas de ouro. Isso ocasionou a supervalorização.
Então a cidade estava confusa. Havia os arrependidos, os felizardos, os aterrorizados, os desesperados, os interesseiros e... e... e...
O Governo Federal criou uma versão oficial sobre as placas. Versão essa que as fazia valerem menos que... “conversa fiada”.
Foi, então, instituída uma lei que tornava eletrônica a identidade. Todos os documentos passariam a ser substituídos por um único documento semelhante a um cartão de crédito. Mas ainda mais sofisticado. O seu material de fabricação era o mesmo usado nas placas. A população estranhou, mas em sua costumeira ignorância aceitou. Era melhor assim. Até porque diminuía o volume de papéis e documentos. Com a nova tecnologia até crianças podiam ser identificadas. Os cartões variavam de tamanho e podiam ser acoplados a correntes, relógios, cintos, bolsas, crachás, broche, chapéus, bonés e qualquer tipo de roupa ou peça do vestuário.
A novidade se espalhou rapidamente pelo país, e criou grupos favoráveis e contrários.
Novamente o povo quis saber como funcionava a tecnologia.
A verdade é que o objeto se não capitava parecia capitar os pensamentos. Todos se tornaram exibidos e orgulhosos. Uns querendo crescer pisando nos outros. A honra não era ser honesto. A honra era ter prestígio. E o povo começou a ficar sem idéias. Sem idéias o trabalho começou a não render.
Mas isso não era nada... Algumas pessoas começaram a desaparecer. E tanto nos jornais, rádios e revistas, como na própria televisão houve uma gigantesca onda de desaparecidos.
As autoridades não podiam explicar o fenômeno. E a cada dia mais e mais pessoas desapareciam, sem deixar vestígios.
E o país foi sendo tomado pelo terror. O tempo passou e só quem havia perdido o cartão ou não usava ficou. Todos os outros desapareceram. Sobrando desses apenas os cartões e os bens que deixaram para trás.
Quem restou evitava falar no episódio. O País retomou seu curso. Sem as crianças, jovens, adultos, idosos, homens e mulheres desaparecidos em conseqüência de uma lei.
O poder público fez valer suas atribuições e passou a obrigar as pessoas a usarem os cartões.
Quem tinha dinheiro e influência, evitava a obrigatoriedade.
Havia também os sortudos, que antes de serem presos eram salvos pelos misteriosos acontecimentos. A polícia e os militares também usavam os cartões, e também desapareciam.
O País entrou em crise. A falta das pessoas desaparecidas emperrava fábricas, colheitas, comércios, hospitais, escolas, e o próprio Poder Público...
Os desaparecimentos pareciam associados diretamente aos cartões, mas haviam desaparecidos que não estava de posse de seus cartões. Uma dúvida e um medo terrível pairavam sobre as pessoas. Todos se sentiam impotentes. Não havia quem os podia ajudar. Estavam a mercê do Poder Público e da misteriosa catástrofe.
Um dia, alguém caminhando, num fim de tarde, descobriu que a estrada fora interrompida por um abismo. O abismo era tão grande que sumia no horizonte. Só se via escuridão e silêncio no abismo. Logo todo o País ficou sabendo do Fato bizarro.
O Poder Público tentou tapar o abismo mas parecia que ele não tinha fundo. Os outros países tentaram ajudar, mas não puderam.
Então, começou a chover cartões sobre o abismo. E choveu tantos cartões que cobriram uma faixa de nove metro do abismo. Era possível caminhar sobre eles. E o pais passou a conviver com um pedaço de abismo cheio de cartões inúteis que tornava deserto o trecho.
Um dia, o País amanheceu sem o abismo. Restou apenas a faixa de sete metro feita com uma torre de cartões. Após ela um gigantesco cemitério circular. E as pessoas se reconheceram nas sepulturas e lápides. Fotos, frases, objetos cobriam um imenso esquecimento de tempos imemoriais vividos, distantes, idos...
E o ontem, o agora, a saudade, a tristeza, o Nunca Mais, o amor, a fé e a esperança se fundiram para além da razão. Geraram sombras, sombras dos vultos do passado. E a cidade, e o país, e o mundo passou a viver debaixo das sombras. Sombras dos que já passaram ao além. Tudo o que as pessoas faziam era regido por decisões, preceitos, acordos, aprendizados, crenças e vivências dos que não vivem mais. E o bem ou o mal era apenas herança, maldita ou bendita...

Trecho do livro "Eternidade"


O shopping está cheio, véspera de natal. Pessoas indo e vindo. Alguns sentados, conversando, esperando, olhando, pensando, comendo, passando tempo. Outros diante de vitrinas com artigos caros e desejáveis. Vez por outra toca um celular. Som quase imperceptível, dado o acúmulo sonoro da multidão. Sorrisos, gargalhadas, choro, gritos, murmúrio, som de passos e músicas.
Até o nome é tedioso de se dizer. Que nome? O nome de festas consagradas pelo mundo cristão. Estas foram recheadas, ao passar do tempo, com fábulas, mitos, dogmas e fantasias. Tornaram-se irreais. Ou pior, dias de festas imaginadas. Tanta tolice era somada a uma data importante, que a mesma findou-se em um momento vazio. Natal e Dia das Bruxas têm o mesmo valor. Embora, Jesus exista, e as bruxas não. Bruxas, não passam de folclore acerca de modos e estilos de pessoas que tendam para o sobrenatural e para o misticismo.
O natal se tornou algo desgastante. Tanto se massacrou a mente popular com o mesmo costume, com as mesmas atitudes, preconceitos, mitos, frases, que já não é algo mágico ou extraordinário. É apenas uma data hipócrita e entediante. Foi esvaziada pelas crendices populares. O aniversariante é menos importante que: a ceia, as festas, amigos ocultos, presentes, discursos... Quem é completamente ateu participa das festas pelas festas e quem é cristão faz o mesmo. Apenas mais um evento social.
No meio da multidão alguém se sente só. Um deserto, ou aquela multidão era a mesma coisa. As pessoas se ensimesmaram na mediocridade de seus dias sem reflexão. Prosseguiram os costumes e atitudes herdados de pais, avós e ancestrais mortos e ignorados. Prosseguiram sem refletir que: aqueles hábitos não foram vantajosos para os que se foram, por quê seriam para os que já viviam em outras comunidade, com outras circunstâncias.
A solidão, que causa tem? A multidão. Sim, a multidão que se vai alienada do próprio mundo em que vive. Hipócrita, acha que tudo está bem. Goza de paz. Paz forjada pela ignorância. Não está próximo da multidão o bom senso. “Se posso, por quê não?”.
Toda aquela prepotência isolou aquele alguém que se angustiava. Ele fora tocado pela própria existência, e não viu sentido na vida... nas coisas.
Três garotas adolescentes passam e olham curiosas um corredor lateral. O movimento foi rápido e elas voltam alegres e sorrindo. Uma comenta que o garoto esta lá. As outras ficam excitadas, também querem ver. E a ação se repete. O desejo domina cada uma das sete adolescentes. O rapaz, que provavelmente era o desejo de apenas uma delas, passou a ser a paixão de todas.
Um rapaz discute com o outro em baixo tom de voz. Sentia-se lesado e queria compensação.
Uma garotinha olhava uma vitrine com desejo nos olhos. A mãe agarra a garota e diz que o artigo estava além de suas possibilidades.
Uma moça passa chorando. Seu namorado pôs fim ao namoro de três anos. Descobrira que gostava de outra garota.
Em uma lotérica alguém gasta duas vezes o próprio salário.
Um casal passeia de mãos dadas. Enquanto a esposa olha as vitrines, o marido repara nas moças, curvas, pernas e vestidos. Sua mente viaja nos desejos quase ocultos.
Um rapaz tenta roubar uma carteira no balcão de uma loja. Sai sem nada. Ninguém percebe a ação. Todos se sentem seguros.
O dono de uma loja repreende o vendedor. Culpa-o do prejuízo que teve. Não percebe que o rapaz é inocente.
E assim, cada rosto traz uma emoção: felicidade, tristeza, alegria, angústia, depressão, esperança, exclusão...
Ninguém percebe o todo. Egoísmo e injustiça andam juntos.
Tanta injustiça. Tanta cegueira. Todos pensando que são justos. Que podem julgar os outros. Todos pensando que controlam seus destinos. Que o outro sempre está errado. Que o Eu é muito importante e inatingível.
Em sua mediocridade uma pessoa magoa a outra. Então chega uma ocasião de festa como aquela. E todos querem demonstrar apresso, dando presentinhos. Presentinhos estes escolhidos com base em uma série de preconceitos pessoais. Quando alguém presenteia outra pessoa, não pensa no que fez de bom ou ruim a ela. O costume está acima das relações.
Com estas reflexões alguém se isolava. Sentia-se só. Massacrado pela vida. Não encontrava ninguém que participasse dos mesmos sentimentos.
A pressão emocional irá adoecé-lo. Antes do que imagina a carne irá cobrar o preço da vida. E ele será mais um dos tantos que partiram sem respostas.
A vida é curta, e a consciência não serve para nada. Viver cada momento intensamente é o que importa. Refletir sobre a condição humana não muda nada. Sempre haverá diferença nos estágios humanos. Pessoas com mais e pessoas com menos. Pessoas governadas e pessoas que governam. E um abismo entre os dois extremos.
O sentimento daquele alguém na multidão foi crescendo. Via os outro e se percebia não fazendo parte da vida deles. Ele se perdia nos próprios pensamentos. Não era o rapaz que as garotinhas estavam admirando. Não era o patrão que possuía muito dinheiro e posição social privilegiada. Não era a pessoa que se regalava com comidas apetitosas. Não tinha a companhia de amigos que o fizesse rir e sentir-se importante. Ninguém reparava nele ali. Ninguém tinha interesse em saber o que se passava em seu interior. Ninguém deixaria sua vida medíocre para participar de uma descoberta tão revolucionária.
Olhou para o passado e viu que ele não brincava com as outras criança, assim como também elas não brincavam com ele. Todos brincavam sozinhos. O outro era apenas mais uma parte dos brinquedos. Mais um elemento que precisava estar presente para que a emoção de brincar se sucedesse.
Todos tinham que se adaptar a todos. Os filhos aos pais. Os pais aos filhos. Todos a comunidade e esta, por sua vez, a todos.
A necessidade do outro existia. O outro, porém, nunca seria o complemento. O outro precisava partilhar as sensações, os desejos, os sonhos, os momentos, as alegrias, os grandes feitos. Ninguém assim parecia existir.