sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Mistério na cidade de Macambá




“A voz do povo é a voz... da elite."
Anônimo

Foi noticiado no jornal, agora era lei. Todos os moradores da cidade de Macambá deveriam ter em suas casas uma placa fornecida pelo governo. Era uma autorização que tornava a casa habitável, uma espécie de alvará. O D.O.A.M. (Documento Obrigatório de Autorização de Moradia).
Nos primeiros meses as filas eram gigantescas. A placa era bonita e virou uma espécie de título, que dava status ao portador. Diferia quem tinha valor e quem não o tinha. Uma parte da placa tinha informações intransferíveis como o endereço da moradia, um breve texto da lei que instituiu seu uso e o nome das autoridades legais. A outra era modificável e trazia o nome dos moradores.
Ao entrar nas lojas, logo era percebida a novidade. As cores eram vivas como as de selos metálicos... O material era desconhecido. A plaquinha era afixada sobre outra que já estava devidamente presa à parede.
Tudo parecia bem. Os moradores estavam felizes com a novidade. Chamavam de "status de moradia". Atraiu turistas e curiosos. Outros prefeitos estudavam a possibilidade de imitar a iniciativa.
Mas em alguns meses as coisas mudaram. Alguns moradores estranhavam o material do qual era feito o objeto. Outros suspeitavam que se tratava de uma espécie de aparelho eletrônico de escuta. Alguns moradores afirmavam que ouviam vozes, sons e viam luzes nos cômodos onde estavam a plaquinha. Alguns suspeitavam que o objeto era um receptor de radiação.
Os mais paranóicos desconfiavam que alguma grande catástrofe estava sendo investigada e que as plaquinhas eram as sondas.
Tudo de errado era atribuído as plaquinhas. Se alguém ficava doente, se perdia o emprego, se brigava, se os gastos da casa aumentavam, se desaparecia algo, se alguém ficava louco, se... se... se...
Em pouco tempo a cidade estava um caos: Intrigas, discussões, revoltas, desentendimentos, terrorismo.
O povo se dividia. Havia os que apoiavam a permanência das placas, e os que eram contrários. Todos já tinham tantos documentos, tinham que responder a tantas leis, por que mais aquele capricho?
Os políticos não se incomodavam o povo sempre acaba aceitando novas leis e se acomodam. Logo ninguém mais falaria no assunto e a polêmica se encerraria. Foi o que aconteceu.
Mas ... um dia alguns cidadão não puderam adquirir as placas para as casa de um novo assentamento.
O governo dizia que o material era muito raro e estava esgotado. Os moradores receberiam uma autorização temporária até que a situação se resolvesse. Sim, "se resolvesse" porque não dependia da administração.
Este episódio criou uma nova polêmica e os moradores acorreram a justiça para buscarem o direito de saber de que eram feitas as placas? E como eram feitas?
O parecer favorável lhes foi dado, mas os técnicos se reservaram o direito de dizer o que queriam. O excesso de termos técnicos e argumentos deixaram o povo na mesma. Os leigos achavam a explanação magnífica, embora não entendessem nada. A peça parecia extraordinária, a melhor tecnologia já inventada. Os técnicos possuíam um "scaner" que permitia a identificação da residência, acesso aos dados da mesma, e a seus componentes.
Já os especialista do povo não ficaram satisfeitos. A demonstração do produto lhes pareceu demasiadamente vaga. Nenhuma das explicações definia bem do que se tratava. Mas eram minoria e não tinha interesse naquela "placa boba" como a chamavam.
Uma epidemia assolou a cidade. Aparentemente só quem possuía as placas ficava doente. A doença causava sono constante, falta de apetite e queda de cabelos e pêlos.
Isto no início. Depois se descobriu que não eram as placas que causavam a doença, mas algo que estava presente na água. Uma espécie de radiação. Os cientista e médicos procuraram inverter a situação.
Era necessário equilibrar a estrutura físico-químico dos corpos. Mas precisavam de uma espécie de filtro para que os raios do equipamento desenvolvido não afetassem negativamente os corpos.
Tudo correria bem, se alguém não tivesse invadido as instalações militares e furtado os metais no intuito de descobrir como eram fabricadas as placas.
O governo pedia à pessoa que praticou o ato, que devolvesse anonimamente o material que removera.
No dia seguinte ao apelo, um milagre aconteceu. Milagre sem precedente na história da humanidade. O material foi devolvido. Todos os moradores doentes fizeram a terapia e se recuperaram bem.
Mas as pessoas estranhavam o grande conjunto de tecnologias do qual o governo tinha posse.
As águas foram descontaminadas, bem como os animais. Mas o que fazer com as plantas?
Então a política nacional se tornou um caos. Parece que o prefeito daquela cidade recusava-se a entregar ao governo federal algum tipo de tecnologia. As coisas aconteciam em sigilo mas o prefeito cuidou para que tudo vazasse para a imprensa. Viu nisso um maneira de se proteger.
Quando o Governo Federal descobriu que todo o povo da cidade tinha em suas casas pedaços do que queria, entrou em pânico. Como faria para reaver as placas?
Partiu para a justiça federal, tentando declarar a medida que instituía as placas inconstitucional. Até obteve resultado, mas não tinha como obrigar as pessoas a entregarem as placas. Já haviam se afeiçoado as tais.
Não existia lei que os obrigasse a entregarem a força as placas.
Então, foi espalhado um boato que a segurança nacional dependia das tais placas. Alguns acreditaram outros não.
Ouve então uma guerra na mídia. O governo declarava uma coisa aos repórteres, mas os cientistas diziam outra.
Alguns políticos simularam um escândalo político. O povo esqueceu a importância das placas, que iam sendo compradas por uma grande corporação. Quando o tumulto passou, o escândalo político já a muito estava abafado.
O Governo Federal desenvolvia um projeto ultra-secreto. Ninguém sabia ao certo qual a finalidade do tal. Só sabiam que era um projeto militar.
O prefeito da cidade teve acesso a informação. Quando adquiriu materiais advindos do projeto, achou por bem espalhá-lo em meio à população. Assim todo o povo teria uma peça-prova do que estava sendo desenvolvido. E o prefeito iria adquirir, prestígio e votos entre o povo. Aquilo o tornaria muito poderoso. Mas política é algo complexo. Sempre vence quem tem mais aliados e mais credibilidade. Obviamente o povo não acreditou na versão do prefeito acerca da conspiração. O povo dividido resolveu obter algum lucro com a situação. Os mais ávidos por dinheiro superfaturavam sua venda. Os acomodados achando o jogo político traiçoeiro, escondiam as placas. Houve quem entregasse as placas a parentes em outra parte do país. E os que entregassem diretamente ao Governo Federal para terem "a barra limpa". Restou alguns que devolveram os placas à prefeitura.
Surgiram então muitas lendas, até sobre o valor das placas.
Quem possuía alguma placa chegou a ficar rico. As lendas davam às placas um valor superior a toneladas de ouro. Isso ocasionou a supervalorização.
Então a cidade estava confusa. Havia os arrependidos, os felizardos, os aterrorizados, os desesperados, os interesseiros e... e... e...
O Governo Federal criou uma versão oficial sobre as placas. Versão essa que as fazia valerem menos que... “conversa fiada”.
Foi, então, instituída uma lei que tornava eletrônica a identidade. Todos os documentos passariam a ser substituídos por um único documento semelhante a um cartão de crédito. Mas ainda mais sofisticado. O seu material de fabricação era o mesmo usado nas placas. A população estranhou, mas em sua costumeira ignorância aceitou. Era melhor assim. Até porque diminuía o volume de papéis e documentos. Com a nova tecnologia até crianças podiam ser identificadas. Os cartões variavam de tamanho e podiam ser acoplados a correntes, relógios, cintos, bolsas, crachás, broche, chapéus, bonés e qualquer tipo de roupa ou peça do vestuário.
A novidade se espalhou rapidamente pelo país, e criou grupos favoráveis e contrários.
Novamente o povo quis saber como funcionava a tecnologia.
A verdade é que o objeto se não capitava parecia capitar os pensamentos. Todos se tornaram exibidos e orgulhosos. Uns querendo crescer pisando nos outros. A honra não era ser honesto. A honra era ter prestígio. E o povo começou a ficar sem idéias. Sem idéias o trabalho começou a não render.
Mas isso não era nada... Algumas pessoas começaram a desaparecer. E tanto nos jornais, rádios e revistas, como na própria televisão houve uma gigantesca onda de desaparecidos.
As autoridades não podiam explicar o fenômeno. E a cada dia mais e mais pessoas desapareciam, sem deixar vestígios.
E o país foi sendo tomado pelo terror. O tempo passou e só quem havia perdido o cartão ou não usava ficou. Todos os outros desapareceram. Sobrando desses apenas os cartões e os bens que deixaram para trás.
Quem restou evitava falar no episódio. O País retomou seu curso. Sem as crianças, jovens, adultos, idosos, homens e mulheres desaparecidos em conseqüência de uma lei.
O poder público fez valer suas atribuições e passou a obrigar as pessoas a usarem os cartões.
Quem tinha dinheiro e influência, evitava a obrigatoriedade.
Havia também os sortudos, que antes de serem presos eram salvos pelos misteriosos acontecimentos. A polícia e os militares também usavam os cartões, e também desapareciam.
O País entrou em crise. A falta das pessoas desaparecidas emperrava fábricas, colheitas, comércios, hospitais, escolas, e o próprio Poder Público...
Os desaparecimentos pareciam associados diretamente aos cartões, mas haviam desaparecidos que não estava de posse de seus cartões. Uma dúvida e um medo terrível pairavam sobre as pessoas. Todos se sentiam impotentes. Não havia quem os podia ajudar. Estavam a mercê do Poder Público e da misteriosa catástrofe.
Um dia, alguém caminhando, num fim de tarde, descobriu que a estrada fora interrompida por um abismo. O abismo era tão grande que sumia no horizonte. Só se via escuridão e silêncio no abismo. Logo todo o País ficou sabendo do Fato bizarro.
O Poder Público tentou tapar o abismo mas parecia que ele não tinha fundo. Os outros países tentaram ajudar, mas não puderam.
Então, começou a chover cartões sobre o abismo. E choveu tantos cartões que cobriram uma faixa de nove metro do abismo. Era possível caminhar sobre eles. E o pais passou a conviver com um pedaço de abismo cheio de cartões inúteis que tornava deserto o trecho.
Um dia, o País amanheceu sem o abismo. Restou apenas a faixa de sete metro feita com uma torre de cartões. Após ela um gigantesco cemitério circular. E as pessoas se reconheceram nas sepulturas e lápides. Fotos, frases, objetos cobriam um imenso esquecimento de tempos imemoriais vividos, distantes, idos...
E o ontem, o agora, a saudade, a tristeza, o Nunca Mais, o amor, a fé e a esperança se fundiram para além da razão. Geraram sombras, sombras dos vultos do passado. E a cidade, e o país, e o mundo passou a viver debaixo das sombras. Sombras dos que já passaram ao além. Tudo o que as pessoas faziam era regido por decisões, preceitos, acordos, aprendizados, crenças e vivências dos que não vivem mais. E o bem ou o mal era apenas herança, maldita ou bendita...

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